Thomas Shelby, personagem da série Peaky Blinders.
Foto: Divulgação/BBC/Endemol/Netflix
É cada vez mais frequente a ideia de que o pensamento “frio e calculista”, à moda de Thomas Shelby (da série Peaky Blinders), seja um benefício nas relações sociais e nas tomadas de decisão.
Ironicamente, isso é visto até mesmo em cartilhas do que alguns propagam como “inteligência emocional”, em que é ensinado como colocar as emoções de lado na tentativa de ser mais racional e objetivo.
Diante disso, é normal surgirem algumas questões: “como tomar uma decisão?”, “como não deixar as emoções influenciaram o pensamento?”, “como ser mais frio e racional?”, “como não demonstrar emoções?”.
Mas será mesmo que a emoção atrapalha a razão?
A ciência da emoção
O neurocientista António Damásio também fez essa pergunta. Para elucidá-la, resolveu fazer análises laboratoriais.
Ao estudar pacientes com lesões cerebrais na região do córtex pré-frontal, uma das áreas das emoções, Damásio observou algo surpreendente: esses pacientes frequentemente enfrentavam dificuldades em tomar decisões racionais, mesmo com suas habilidades cognitivas intactas.
Essa descoberta levou à Hipótese do Marcador Somático, que destaca a interdependência entre emoção e razão. Ou seja, no processo cognitivo, a emoção não contrapõe a razão, mas a auxilia.
O córtex pré-frontal é esta região do cérebro em vermelho.
Entre outras funções, é responsável pela regulação emocional.
Ilustração: Wikimedia Commons
“Certamente não é verdade que a razão opere vantajosamente sem a influência da emoção. Pelo contrário, é provável que a emoção auxilie o raciocínio, em especial quando se trata de questões pessoais e sociais que envolvem risco e conflito”[1], escreve Damásio.
Isso significa que, quando estamos diante de um dilema e prestes a tomar decisões, as emoções que envolvem aquele contexto dão sinais internos no corpo e influenciam o processo cognitivo – às vezes, entendemos essa influência como “palpite” interno ou, de maneira menos perceptível, como “intuição”.
Esses são sinais de como as emoções participam no processo saudável que configura o pensamento. “(...) a emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples ou complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas ao corpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas também dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral), resultando em alterações mentais adicionais”, explica Damásio[2].
Assim, as emoções representam processos vitais e saudáveis em nosso corpo, que são percebidos pela mente. Contudo, sua ausência não é natural, tampouco indica maior inteligência; ao contrário, sugere o oposto.
Emoção e sentimento – qual a diferença?
Não é à toa que “emoção” tem raiz etimológica na palavra latina “emovere”, que passa a ideia de mover para fora/movimento.
Esse sinal interno que movimenta o corpo é dividido em duas categorias por Damásio: as emoções primárias e as emoções secundárias.
As emoções primárias são reações emocionais inatas e pré-organizadas que ocorrem desde o nascimento. Essas emoções dependem de circuitos cerebrais, especialmente da amígdala e do cíngulo, que são ativados quando certas características dos estímulos são detectadas, como tamanho, movimento, sons específicos e configurações do estado corporal. A amígdala desempenha um papel central nesse processo, desencadeando estados emocionais, como o medo, e influenciando o processamento cognitivo correspondente a essa emoção.
O medo é uma emoção primária.
Medusa, de Caravaggio | Foto: Wikimedia Commons
Já as emoções secundárias, ao contrário das primárias, não são inatas, mas sim adquiridas através da experiência única de cada indivíduo ao longo da vida. Elas surgem quando começamos a formar associações entre categorias de objetos e situações com as emoções primárias. Essas associações são representações pessoais e distintas, baseadas na história individual de cada um.
Enquanto as emoções primárias dependem de disposições inatas, as emoções secundárias são impulsionadas por disposições pré-frontais adquiridas, embora ambas sejam interdependentes para sua expressão.
Exemplos de emoções secundárias: a culpa, a vergonha e o orgulho – coisas que aprendemos a sentir dependendo do contexto social e cultural em que vivemos.
Os sentimentos surgem da percepção das alterações no estado corporal, acompanhadas pela evolução contínua dessas sensações ao longo do tempo. Os sentimentos são distintos das emoções, pois enquanto todas as emoções originam sentimentos, nem todos os sentimentos têm origem nas emoções.
Essa experiência interna das mudanças corporais, em conjunto com as imagens mentais que as desencadearam, constitui a essência do sentimento. Um sentimento é a percepção das mudanças no estado do corpo em relação a outras imagens mentais, combinadas com alterações nos processos cognitivos induzidos por substâncias neuroquímicas.
“Os sentimentos, juntamente com as emoções que os originam, não são um luxo. Servem de guias internos e ajudam-nos a comunicar aos outros sinais que também os podem guiar”, escreve Damásio. E acrescenta: “Os sentimentos permitem-nos entrever o organismo em plena agitação biológica, vislumbrar alguns mecanismos da própria vida no desempenho das suas tarefas. Se não fosse a possibilidade de sentir os estados do corpo, que estão inerentemente destinados a ser dolorosos ou aprazíveis, não haveria sofrimento ou felicidade, desejo ou misericórdia, tragédia ou glória na condição humana”[3].
Ou seja, em linhas gerais, a emoção é uma resposta motora gerada e percebida pelo cérebro diante de algum acontecimento, enquanto o sentimento é uma interpretação realizada pela mente sobre essa resposta motora.
Os gregos antigos e as emoções
Seja qual for a época, as emoções sempre estiveram – e estarão – presentes nas encruzilhadas da vida, apontando caminhos e revelando verdades que a razão sozinha não pode alcançar.
Os antigos gregos, por exemplo, percebiam essa força capaz de nos mover como mensageiros – ou manifestações – dos deuses, e davam muita importância para onde apontavam esses sinais internos.
Na Ilíada, de Homero, são diversas as intervenções dos deuses na narrativa. Sob o poder divino, os humanos são capazes de realizar façanhas difíceis com facilidade, movidos por uma energia que vem de dentro. Quando Heitor veste a armadura de Aquiles, Ares, o deus da guerra, entra nele e enche seu corpo de coragem e força. Não é à toa que a temática principal da Ilíada é uma emoção: a raiva.
Na mesma história, Helena – a rainha espartana que partiu com o príncipe troiano, marco inicial da Guerra de Troia – conversa com Afrodite. A mulher culpa a deusa por seu apaixonamento e ironiza até onde pode ser levada pelas vontades da deusa do amor: “Na verdade me levarás para mais longe, para uma das cidades bem habitadas da Frígia ou da agradável Meônia, se também lá existir algum homem mortal que te é caro”[4], afirma.
Páris e Helena apaixonados - emoção que se atribuía à Deusa Afrodite.
Detalhe de frasco de óleo, 420 - 400 a.C. | J. Paul Getty Museum
A presença dos deuses era tão marcante na Grécia Antiga que, além de serem percebidos como responsáveis por ideias e atitudes estranhas, também eram a fonte de inspiração e de habilidades adquiridas. O poeta grego Hesíodo, nas obras Teogonia e Os Trabalhos e Os Dias, sempre inicia a narrativa invocando as Musas. Ele afirma que foi inspirado pelas Musas enquanto pastoreava ovelhas no Monte Hélicon, na Grécia, o que o levou a se tornar poeta.
Também vemos essa inspiração dos deuses na Odisseia, de Homero. Fémio era um aedo que recitava poesias ao toque de uma lira. Para evitar ser assassinado por Odisseu, agarra os seus joelhos e diz ser “autodidata” em seu ofício, pois “foi um deus que implantou todos os tipos de baladas em minha mente".
Nessas narrativas antigas, os eventos mentais e físicos – o que hoje destinamos às emoções – eram atribuídos às divindades. Estudioso sobre essa temática, o filólogo irlandês Eric Robertson Dodds escreve: “Sempre que alguém tem uma ideia particularmente brilhante ou particularmente tola; quando repentinamente reconhece a identidade de outra pessoa ou vê instantaneamente o significado de um presságio; quando se lembra do que poderia ter esquecido ou esquece o que deveria ter lembrado, ele ou outra pessoa verá nisso, se quisermos tomar as palavras literalmente, uma intervenção psíquica por um desses seres sobrenaturais anônimos”[5].
Deuses gregos como metáforas para as emoções
Uma das formas de compreendermos nossas emoções é saber vestir os óculos dos antigos gregos. Isso quer dizer que podemos fazer o exercício de entender as divindades do Olimpo e do Hades como metáforas que falam sobre nossas vidas.
Essa é uma forma de nomearmos para entender a nossa vida interior. Quando estamos tomados por uma emoção, há um deus ou uma deusa em ação. E eles merecem ser respeitados. Ainda que você escolha não agir a partir desses instintos, é saudável ter cautela, ouvir o deus dentro de você e a mensagem de sabedoria presente naquela emoção.
Se você souber fazer isso, verá que até as emoções mais aflitivas contêm um ensinamento secreto, conduzindo a estados sublimes de presença, alegria, confiança em si mesmo e na vida.
Reconhecer todas as emoções – ou seja, todos os deuses e deusas – é parte salutar de equilíbrio. É usar o cérebro como um todo – e não apenas a parte que cabe à inteligência racional. Afinal, essa não é a única inteligência que temos em ação.
Se vivermos fixados em apenas uma emoção ou se as colocamos embaixo do tapete da nossa mente, teremos percepções menos sábias.
Escrevemos sobre isso no livro As Deusas Gregas e o Inconsciente. Atena, deusa da sabedoria, nasceu da cabeça de Zeus. Podemos olhá-la com muitos atributos associados à razão, pois é estratégica, guerreira, fria. Mas, de forma desmedida aplicada como metáfora para as nossas vidas, o que pode estar associado à inteligência, em verdade, se transforma em ignorância – sobretudo, ignorância emocional.
Deusa Atena parece não expressar emoção alguma ao agredir o centauro.
Pallas and the Centaur, de Sandro Botticelli (1445 -1510) | Galeria Uffizi
“Se você se identifica com a deusa Atena, é muito raro que se permita ser levada ou levado por uma emoção – e quando isso acontece, o sentimento de culpa vem a reboque. Em algumas situações, isso pode lhe render o título de ‘coração de gelo’; em outras, você vai descobrir que isso pode ser uma verdadeira bênção, lhe capacitando a agir da maneira mais estratégica e impessoal em momentos de caos. O tão famoso autocontrole. Ironicamente, a inteligência – quase utilitária – de uma Atena pode também cegá-la para a necessária inteligência emocional, que reconhece humanamente as emoções”, p. 70, em As Deusas Gregas e o Inconsciente[6].
A sabedoria, portanto, nasce do esforço de integrarmos a emoção e a razão. Como propomos em nossos livros, conseguimos desenvolver esse aspecto fundamental de autoconhecimento à medida que ampliamos o nosso vocabulário emocional – por meio das narrativas antigas e pelas linhas da escrita profunda.
A escrita profunda como auxiliar nas emoções
A escrita profunda, método desenvolvido por nós, da Inspira, reúne diversas ferramentas de várias áreas do conhecimento para colocar a vida em forma de narrativa. Como tudo o que nos é inteligível passa da linguagem à forma narrativa de compreensão, assim podemos fazer com cada detalhe da nossa própria história. Você pode aprender como aplicar a escrita profunda como via de descoberta do seu mito pessoal e perceber os benefícios por meio dos nossos livros e dos nossos cursos.
Detalhe do quadro Retrato de uma mulher,
de Adélaïde Labille-Guiard (1787) | Wikimedia Commons
Os benefícios da escrita na saúde são comprovados por pesquisas científicas. Ao longo de mais de quatro décadas, o pesquisador James Pennebaker, professor do Departamento de Psicologia da Universidade do Texas, encontrou diversos pontos positivos na relação entre escrita e saúde, tais como a superação de traumas, o controle emocional, a gestão da reatividade, a melhora no sistema imunológico, o apaziguamento da compulsão alimentar – e, com isso, o controle do peso –, a melhora nos relacionamentos interpessoais, a evolução da criatividade e mais eficiência no trabalho e na vida[7].
Recentemente, uma pesquisa publicada na revista Nature comprovou que escrever os pensamentos num papel e depois rasgá-lo auxilia positivamente no alívio de emoções, como a raiva[8].
Além de emoções mais pulsantes, como a raiva, também experienciamos outras tantas no nosso dia a dia. Fazer o exercício diário de prestar atenção nas próprias emoções – refletidas e ampliadas com as imagens culturais, como os mitos, que nos ajudam a pensar – e escrever no papel o que elas gritam no corpo é fonte inesgotável para o nosso autoconhecimento e para tomarmos decisões de forma mais equilibrada na vida.
Conclusão – Como tomar uma decisão?
Aprender a ouvir nossas emoções é como decifrar um código ancestral, é compreender a linguagem da alma. Afinal, na evolução humana, a emoção se estabeleceu antes do aparecimento da consciência. Cada lágrima, cada riso, cada suspiro, é uma peça do quebra-cabeça que compõe nossa identidade.
Isso não quer dizer que devemos apenas ouvir nossas emoções, como sinônimo de “seguir o coração”, quando formos tomar decisões em nossas vidas. Mas, sim, considerarmos as marcas das emoções no corpo – sejam como metáfora dos deuses, sejam como resposta motora do cérebro – de forma harmoniosa com a razão no processo de cognição.
Ou seja, pensar de forma inteligente é também considerar as emoções no nosso processo cognitivo.
É através desse diálogo íntimo e necessário, entre emoção e razão, que nos tornamos mais sábios e, também, mais autênticos.
Saiba mais sobre esse fascinante tema no nosso livro As Deusas Gregas e o Inconsciente.
Referências bibliográficas:
[1] DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[3] DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[4] HOMERO. Ilíada. São Paulo: Penguin Companhia, 2013.
[5] DODDS, E. R. The Greeks and the irrational. Connecticut: Martino Fine Books, 2019.
[6] MESCHIATTI, Amanda; SANGALLI, Heryck. As deusas gregas e o inconsciente – escrita profunda e narrativas míticas. Vila Velha, ES: Ed. dos autores, 2023.
[7] PENNEBAKER, James W. Expressive writing: words that heal. Issaquah, WA: Idyll Arbor, 2014.
[8] KANAYA, Y., KAWAI, N. Anger is eliminated with the disposal of a paper written because of provocation. Sci Rep 14, 7490 (2024). https://doi.org/10.1038/s41598-024-57916-z
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