Este texto foi publicado originalmente na Revista Inspira, edição #5, abril de 2020.
Essa é a estreia da nossa coluna terapêutica Imago Mundi. Aqui, contaremos histórias mitológicas que pautaram o mundo e que vivem dentro de cada um de nós. A finalidade é curativa. Você lê, reflete quais arquétipos está alimentando em você e age em conformidade e compaixão com a sua essência. Neste artigo, falamos sobre o divino em nós e sobre ritualizar a vida.
O DEUS BRAHMA ESCONDEU O PODER DIVINO...
Uma antiga lenda indiana conta que, no princípio, todos os homens e mulheres eram deuses. Então, eles começaram a abusar dessa condição divina e Brahma, o mestre dos deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino e escondê-lo até que fossem merecedores de encontrá-lo e de assumir novamente sua forma de deuses. Mas qual seria o esconderijo perfeito?
Alguns deuses sugeriram que Brahma escondesse a divindade humana nas profundezas da terra. Mas Brahma anteviu que a vontade do homem o faria escavar por toda a superfície terrestre e ele logo encontraria o tesouro sem ainda estar pronto para isso.
Outros, sugeriram que Brahma jogasse a tal porção divina no fundo do oceano mais profundo. E Brahma novamente recusou. Em algum momento, a inteligência do homem seria capaz de colocá-lo no fundo do mar e ele tomaria sua divindade ainda sem estar preparado para tanto.
Sem saber como resolver a situação, Brahma pediu ajuda ao grande deus Shiva, que encontrou uma solução: esconder a divindade nas profundezas do próprio homem. O homem remexeria céus e terra. A última coisa que buscaria seria conhecer a si próprio.
Esquecemos quem fomos um dia, mas algo ficou em nossa memória molecular. Sentimos saudade da época em que éramos inteiros e infinitos. Imagens do divino nos despertam fascínio.
Lembro-me bem da sensação que tive ao entrar em contato, pela primeira vez, com ilustrações dos deuses de formas humanas da Grécia Antiga que povoavam as páginas do meu livro de História da terceira série. Ou da icônica cena de Marilyn Monroe segurando seu vestido quando um vento a surpreende, semelhante à Vênus soprada por Zéfiro, o deus do vento, em seu nascimento retratado pelo renascentista Sandro Boticcelli. Há algum motivo incompreendido para que imagens como essa fiquem gravadas na mente da humanidade.
Algo dentro de nós nos puxa para uma partícula do que um dia fomos e isso nos desperta um desejo imanente: queremos ser especiais.
Acreditamos que seremos especiais quando algo de fora puder confirmar isso: casar-se, para que a pessoa amada nos dê algum sentido do porquê de estarmos aqui; ter milhares de diplomas, para afirmar que escalamos ao topo da consciência racional humana; ou morar em uma cobertura para acreditar que do alto do Olimpo de concreto pode se considerar um pouquinho Zeus.
Estamos, como no conto, buscando a divindade em oceanos sem tesouros e em terras não fecundas. Ainda não criamos a consciência de que o divino é invisível – o que significa dizer que só pode ser visto olhando para dentro.
RITUALIZAR A VIDA
Assim como a lenda indiana é reveladora em nos mostrar o caminho, os mitos e contos contados desde o início da humanidade nos fazem acessar, por meio de uma linguagem simbólica, as chaves para o (re)conhecimento e para o acesso ao divino em nós. Eles ressoam com experiências humanas compartilhadas e recorrentes.
Mas é mais do que isso, os mitos elevam nossa consciência a enxergar uma dimensão mítica da vida. Nos colocam como parte de um todo, e por isso fazem com que sejamos infinitos, eternos. Organizam o caos, e por isso nos apresentam nossa possibilidade do sagrado e entrelaçam nossas vidas com algo maior, com mais propósito.
Eles apontam para a oportunidade de ritualizarmos a existência.
Se há uma grande mente criadora de tudo o que existe, essa mente funciona como a de um grande artista. Todo artista cria a partir de suas experiências, de algo que um dia lhe tocou. Dessa forma, nós somos uma centelha de algo que um dia deixou marcas na mente criadora. Somos importantes. Cada um de nós tem sua razão poética de ser. Tem valor artístico.
Para Platão, o filósofo, todas as coisas nascem primeiro no Mundo das Ideias. Então, a matéria se inspira e se organiza para manifestar aquela ideia, aquele modelo original. As coisas manifestadas nunca ficam iguais à ideia que as originou. E, para ele, evoluir seria justamente ir em busca de corresponder ao arquétipo do qual se foi criado. O que exige – mais uma vez – o mergulho interior, conhecimento e coragem para a transformação.
Na busca da integridade de si, somos confundidos pela cultura da época com estereótipos de quem deveríamos ser ou que devemos nos conformar em continuar sendo.
E se, em vez disso, focássemos na riqueza simbólica de arquétipos universais e atemporais? E se, em vez de procurarmos nos encaixar em modelos artificiais, procurássemos criar uma narrativa singular a partir dos erros e acertos de personagens milenares que habitam nosso inconsciente e que estão relacionados à própria natureza humana? E se pudéssemos inventar a nossa própria vida a partir de uma fonte interior?
A DIVINDADE EM MIM
A romancista Alice Walker, autora de A Cor Púrpura, nos leva a concluir que imaginamos deus e colocamos nele ou nela as qualidades de que necessitamos para sobrevivermos e crescermos.
Dessa maneira, é como se estudar a mitologia de deuses pudesse nos fornecer mapas mentais de conexão com nossa parte mais instintiva. Aquela parte que temos sufocado e que nos leva a repetir padrões, situações que machucam e sentimentos que vez ou outra voltam a nos perturbar e a roubar nosso poder pessoal.
As histórias de deuses e deusas, seus dramas, aspectos negativos, forças e tendências pessoais têm muito a nos ensinar. Não falamos de ouvir suas histórias com fé, isso é uma escolha religiosa pessoal. Falamos aqui da escuta pedagógica de histórias que sempre vão ressoar em algo que temos dentro de nós (seja positiva ou negativamente) e nos levarem a encontrar sentido e crescimento pessoal.
Há muito tempo a medicina ancestral hindu receita histórias para que pessoas com dificuldades emocionais e mentais possam meditar e encontrar suas próprias soluções para seus problemas.
Uma boa história nos conecta com algo que fica submerso na lógica racional do dia a dia e nos põe em contato com algo mais primitivo dentro de nós mesmos.
Vamos testar esse potencial de cura juntos? Nas próximas edições dedicaremos essa coluna para a contação de histórias e para a conexão curativa com o sagrado que nos habita. Essas histórias exigirão de você três coisas: atenção, reflexão e ação. Será um processo terapêutico!
Para começar, fica a tarefa: não duvide do que um simples ato cotidiano pode fazer por você energeticamente.
Arrumar a mesa para jantar, mesmo que você coma sem companhia, pode lhe colocar em contato com forças primordiais, como a da deusa Héstia, a deusa do lar, que apreciava sua própria companhia. E que autoconfiança isso desperta! Sair de casa e caminhar sem rumo, apenas pela curiosidade de ver o que está acontecendo, se sentir livre, pode ativar nosso Hermes interno, o mensageiro. Tomar um bom banho, escolhendo sabonetes com aromas especiais, pode trazer as sensações de amor-próprio que despertam a Afrodite de qualquer pessoa.
Teste isso a partir de agora!
Qual deus ou deusa você precisa ativar neste momento dentro de si mesmo?
Saiba que todos eles são uma potência de você mesmo.
Ritualize a vida, coloque consciência em tudo, esteja inteiro na experiência e o sagrado que existe em você vai limpar a poeira e se libertar do esconderijo em que esteve guardado há tanto tempo!
A Inspira lançou o livro As Deusas Gregas e o Inconsciente - escrita profunda e narrativas míticas. Nele, reunimos o perfil psicológico de oito deusas gregas que podem estar guiando a sua vida a partir do seu inconsciente. Você vai encontrar sabedorias e exercícios de escrita profunda para cada uma delas, te ajudando a se conscientizar das forças que te mobilizam, integrar as que estão nas sombras e se familiarizar com todas essas potencialidades.
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